quinta-feira, 11 de outubro de 2012


Primeiro veio o sol, não parecia poético ou inspirador, tava mais pra uma bola de fogo incandescente destinada a lhe derreter a maquiagem. Eram duas da tarde, e nessa hora ninguém - nem mesmo o sol - tem alguma piedade. Comprou um picolé rosa choque pela impossibilidade de ver qualquer outra cor depois de vê-lo, se perguntou o que ele pensaria quando chegasse e a visse assim, chupando picolé rosa choque. Sorriu. Às duas e quarenta e cinco pegou um livro de Dickinson, e o fechou cinco minutos depois, não queria estragar Dickinson com a espera. Circulou a praça alguma vezes, uns mendigos com olhares longos, sabiam que ela estava perdida. Ela sabia que sabiam. Só alguém perdido pode ver os olhos de quem está perdido. É uma questão um tanto óbvia… não se pode enxergar o interior de um labirinto que não se cruzou. Ele não vem. Ela pensou pela primeira vez às três e meia. Ele não vem. Não é incrível a dificuldade que a maioria das pessoas tem em mentir pros outros e a facilidade que todas tem de mentir pra si? O ônibus quebrou, ele esqueceu de colocar gasolina, a mãe - meu Deus, dona Mirtes! - teve um enfarto. Ou… bem… não, essa não. Resolveu lhe escrever um poema às quatro. 

‘Se você soubesse - monamour, se soubesse - o quanto teu riso é mais bonito que o sol. Não sou poeta, menina ou violão. A única rima que tenho com sol é dó. O que dó faria num poema pra ti? Coisa nenhuma, se você me estendesse a mão.’ 

Achou horrível e escondeu na bolsa, de costas pro livro de Dickinson, que ela também não pode ver. Pensou então que dó e piedade dizem a mesma coisa mas piedade dói mais, estranho. Eram quatro e dez, o sol já não doía tanto. As nuvens escureceram e começou a chover. Tinha sol, tinha chuva, esperava que aquela história da viúva se casar fosse real, imaginou uma mulher com cinquenta calendários vencidos vencendo esse acompanhada e feliz, sorriu. Ela… bem, tinha mais uns dias pra vencer só. Às cinco desistiu de esperar. A chuva passou e a água que ficou no seu corpo a fazia tremer. Se levantou, deixou o poema ruim no banco com uma mancha seca, era onde estava sentada. Observou ele voar até a poça d’água mais próxima, viu suas letras embaçarem, estourarem, se mesclarem, nem Dickinson o leria. Acenou pros mendigos, viu dó neles, dó dela. Não pensou nele, ele não existia mais. O enfarto não foi em Dona Mirtes não, foi nele. Fulminante, morreu na hora. Na cabeça dela, sim. No aeroporto riscou todos os países que tinham alguma letra do nome dele e que rimavam com dó. 
Foi feliz no Uzbequistão.

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